10.4.09

Carta aos Produtores


Caros produtores,

Não é à contragosto que escrevo essas linhas. Se o faço é primeiro porque amo o teatro. Depois, para citar Constantin Stanislavski como se evocasse forças superiores, amo o teatro em mim e em todas as pessoas. Um terceiro motivo ainda é esse conhecido de vocês, o fato de que preciso e almejo sobreviver de minha arte, de meu trabalho. Vocês têm a caneta que aprova, vocês têm o bom-senso, vocês tem sido muito legais com muita gente, por que não seriam com um grupo que tem feito um trabalho sério, bonito e profundo como o nosso?

Saibam, tenho mais dúvidas que convicções. Mas tenho essa convicção, a de que vocês alguma vez em suas vidas tenham se comovido, experimentado um momento epifânico, algum reconhecimento de si naquilo que assistiram. Ou então, tenham se colocado diante de algum desafio, desejado conviver uma obra de arte, uma única e transformadora cena sequer, num truísmo de desvendar suas camadas (as da obra e as suas de ser humano) de compreensão. Ou até mesmo ter sido embalados por melodias, jogos e cores propostos por um grupo de atores que salvaram seu namoro, seu casamento, seu dia, ou sua vida. E vocês ficaram felizes ao presenciar aquele acontecimento. Algo que havia naquela música, naquele ritmo, naquela imagem, naquelas pessoas, fizeram com que seus semblantes subitamente, sem que vocês percebessem, se desanuviassem. E dali, após a peça, vocês foram para um café, para o motel, vocês foram conversar a respeito, e aquilo que viram continuou ecoando, eclodindo em seu sangue, em seu coração, na cabeça. E já não havia ferrenhas mandíbulas por perto. Nem nada a exumar. Pelo contrário, vocês estavam completamente dispostos a exaltar a criatividade. Isso que digo não é utópico, acontece todo dia. Sei porque já aconteceu inúmeras vezes comigo. Se assim é também com vocês, ou foi, será, e se será significa que não somos diferentes uns dos outros, nós artistas e vocês produtores, que temos ligadas intrínseca e essencialmente nossas profissões.

Estou escrevendo antes de mais nada para pedir que olhem com carinho para o nosso projeto, que não é iludido, embora pretenda muito. A nossa peça se chama Na verdade não era, nela vocês notarão que às vezes a profusão de como é narrada a estória faz com que se articule uma hiper-racionalização, porem tal ação tem como resposta imediata a certeza de que o último grau de lucidez também produz delírios, uma liberação entusiasmada, uma festa para inteligência e para as sensações. Isso porque as atrizes sabem contar essa estória com a voz molhada de bondade. E contar uma estória dessa forma é o mesmo que cantá-la. A nossa peça é uma cantiga de amar a cidade, com tudo que há de extraordinário nela. Mas isso de desvendar o extraordinário só foi possível depois que olhamos muito e atentamente para o ordinário, para o mundano. Ou seja, estamos na tentativa de abarcar o máximo de sutilezas e revelações possíveis.

Deixe que lhes fale, o teatro é como os relacionamentos, não é possível que o desempenhemos sozinhos, exige convivência, cobra paciência, construção afetiva. Isso depende de todas as partes, estamos sinceramente tentando fazer a nossa, mas precisamos de sua ajuda, queremos repetir um sem-número de vezes a mesma ação, pelo motivo de que ela se transforma a cada dia. E por que a ação se transforma a cada dia? Porque na peça Na verdade não era as atrizes se aproximam da consciência da platéia apresentando-lhe algo que ela (platéia) reconhece imediatamente, cenários comuns a todos, estórias com desdobramentos nem tão impossíveis assim, porem surpreendentes. Intervindo na imaginação do público, promove um jogo em que a cooperação instintiva e não menos racional pede intimidade, é um pacto, como se fossem segredos que agora todos comumente compartilham. O rito é compartilhado, a aventura é de todos, cada um na platéia é autor e executador do espetáculo, cada qual levará para casa um Na verdade não era particular. Vocês sabem, só se pode afirmar a relevância de uma obra para a sociedade se a obra for uma ação. Assim, o artista instrumentado, o que passou por inúmeros processos, o que se debruçou diante de seus estudos, que treinou as técnicas, as engrenagens físicas e psíquicas, o que desenvolveu um olhar particular em relação as coisas, visão de mundo, esse para além de ser um artista pode que seja alguém mais humanizado, compreensivo.

Certamente não me debruço a escrever essa carta com o intuito de fazer sucesso. Mais que sucesso pretendo fazer sossego, e isso não é só um trocadilho idiota. É que estou convencido que quando alguém me dá o privilégio de dedicar seu tempo a uma peça que escrevi, permitindo que eu retribua proporcionando-lhe acesso a ternura que há atrás de toda aquela estrutura, isso para mim é fazer sucesso e sossego ao mesmo tempo. Se o teatro, no que tange questões práticas do dia-a-dia, mesmo em termos civilizatórios, para alguns é menos relevante do que, por exemplo, a hidráulica que deu um jeito da água jorrar pela parede de qualquer apartamento, mesmo assim sempre haverá aqueles para quem não é possível passar mais de sete dias sem testemunhar um ato cênico, seja no cinema, na literatura, ou no teatro. Mais que um hábito, para esses vai que o teatro, sem receio do clichê, é uma necessidade, quem sabe até mesmo orgânica. Daí que o teatro não funciona como um interruptor de luz, é verdade, um liquidificador, ou um travesseiro, mas certamente cumpre papel decisivo naquilo que venho chamando de tecnologia do afeto.

Seres humanos pensam, riem, choram, apaixonam-se, eis o ponto nevrálgico, nisso consiste a necessidade de que falei. Sem isso, que é visceral, e o cérebro no fundo é um grande estômago, sem isso não há o ser humano. Não podemos salvar as personagens de uma peça. Talvez não possamos sequer salvar o homem e a humanidade. Mas não devemos esquecer que a desesperança é só um jeito de imaginar, é um dos vieses da criação. Há outros, talvez investir tempo em compartilhar experiências com pessoas seja o melhor jeito de não deixar que as pessoas, muito mais que as estórias ou a arte, não se acabem. Assim, queridos produtores, fico aqui quebrando a cabeça. É preciso escrever algo sobre mim, sobre a peça, sobre o grupo que soe vendável, comercializável. Muito bem, não sei o que pode ter mais valor, mesmo comercial, do que dizer a verdade. Com verdade nos olhos e nas mãos que dedilham o teclado, faço-me a pergunta: Por que acredito tanto na peça Na verdade não era?

Porque para mim a literatura tanto quanto o teatro são a realidade. A arte é um modo possível de operar o real. A vida, creio, a estamos reinventando, reinventariando a cada dia. Pois bem, assim eu consigo viver. Assim eu sou capaz de promover uma exigente e perscrutativa declaração de amor. Não uma declaração a uma pessoa apenas, mas também a ela, tanto quanto a muitas outras pessoas e, por que não?, a seus duplos, em espírito e psique. Não obstante, Na verdade não era é uma declaração de amor à ficção, à essência de inventador de estórias que há no homem, a sua capacidade lúdica de entreter-se, de seduzir o outro, de confiar. O que não sabemos nomear talvez seja o que nos salva, o que salva as atrizes e a platéia quando interagimos nessa comunhão pública, nesse lugar que é o que está entre nós e a platéia. Eis o lugar que como escritor almejo, eu quero ser esse lugar público. Porque em tal sítio não existe mentira, ela não se sustenta, ali é quando o labor da arte produz efeitos cirúrgicos, silenciosos no coração, no sangue, no cérebro daquele que comunga o mesmo ato, o da esperança por acreditar que de algum modo isso nos faz melhores para continuar. Nisso está minha declaração de amor, agora dissipada e, porque, artistas profissionais ou não, somos todos sensíveis, vivemos para criar e somos criados. Essa minha carta, amigos, é um bumerangue, algo que vai e volta e que não tem dono, um bumerangue poético, porém demasiado real, uma coisa chamada lugar público.


Luiz Felipe Leprevost

04 de abril de 2009 – domingo.

Curitiba.

Santa Felicidade.